quarta-feira, 18 de outubro de 2023

ASSIM TENHO SIDO – Parte 2

Ficavam para trás, em terra longínqua de cor vermelha, tantas histórias que criança alguma deveria viver, trazendo comigo memórias que me acompanham desde então e que se expressam em cinco sentidos: a visão dos pertences, que tanto custaram aos meus pais adquirir com o esforço do seu trabalho, espalhados pelo caminho, semidestruídos ou mesmo destruídos, num vandalismo indescritível; o cheiro quente e agoniante da morte, emanado das pilhas de cadáveres com que me ia cruzando pelo caminho; o silvo das bombas atrás de mim e para diante, antecedendo aquele clarão ofuscante que me estremecia a alma; o trepidar do chão aonde me deitava para me proteger aquando dos rebentamentos de todo o tipo de alimentos de guerra; e o sabor amargo da transpiração resultante de tantas fontes de ignição à mistura.

Ficavam, igualmente para trás, outras tantas memórias de traquinices: a ingestão da cabeça dos fósforos de uma caixa completa e consequente passagem pelo hospital para uma “ardente” lavagem ao estômago; que somado a outros episódios caricatos e, não menos perigosos, como aquele caroço de azeitona que andou dentro do meu nariz uma semana e que somente foi possível extrair com recurso a uma espécie de berbequim, algo nunca visto antes naquele hospital; ou ainda aquela cabeça partida que trago comigo vincada na sobrancelha até hoje, bem visível ao chegar a Portugal, despertando comentários, aos quais respondia a minha mãe, para amenizar o impacto, que foi um herói, pois levou com 8 pontos a sangue-frio e não chorou…, o tanas!!! Foram precisos vários adultos para segurarem o “diabrete” enquanto era cosido!

E como não só de salvar a pele se reveste a vida do Pedro quando criança, recordo ainda como começou o meu mau jeito para o negócio: fomos dos últimos portugueses a partir, e quem fugia à nossa frente deixava os seus pertences para trás, oportunidade aproveitada por mim e pela minha irmã, para montarmos uma banca no centro da cidade…, agora imaginem a cena: duas crianças com 7 e 10 anos respetivamente, no centro da cidade de Luanda, em plena guerra, tentando vender a coisa alheia – livros em particular – a nativos que nem dinheiro tinham para comer…, rapidamente abrimos falência! 

Longe de tudo que tinha, inclusive do meu próprio pai, de quem fiquei distante durante dois anos, na incerteza se o voltaria a ver, porque teve de se manter por lá a segurar a empresa, com a vida permanentemente em risco, sujeitando-se a comer praticamente arroz com arroz, sendo este o seu generoso contributo para que hoje em dia muitas portuguesas e muitos portugueses possam ter o seu sustento e uma melhor qualidade de vida, as mesmas pessoas que lhe “agradeceram” rotulando-o depreciativamente como “retornado que lhes veio roubar o pão”.

Recomeçar a vida do nada para uma criança não foi fácil: no caminho entre casa e a escola existia o permanente receio de me encontrar com um terrorista armado ao virar da esquina; se me cruzasse com alguém que não tivesse lá muito boa apresentação, logo voltava para casa a correr… a minha “trincheira”! Para agravar a situação, os malditos foguetes da festa da Nossa Senhora das Dores, eram o recomeço do conflito armado..., um tormento para a minha mãe! Lá tinha de ir à procura do rapaz que, certamente, se havia escondido em qualquer canto para não ser atingido pelos imaginários projeteis da Santa!

À noite, na modesta casinha do fundo do quintal da avó, em 3 reduzidos quartos (9 metros quadrados, o máximo), acomodava-me junto de 4 adultos e mais crianças, mas com boa vontade tudo se arranjou. O que mais me custava suportar era o frio, tanto é que certo dia, o teto, com pena, resolveu cobrir-nos, caindo sobre nós…, era o que havia e nada de reclamar! Assim como uma casinha de banho no quintal, à qual se tivesse de recorrer durante a noite em pleno inverno, com as famosas nortadas, o mais certo era chegar lá com o xixi já congelado!

Mas lá consegui completar a 2ª classe, conforme orgulhosamente se revela na fotografia anexa.

Continua… 




Pedro Ferreira © 2020
(Todos os Direitos Reservados)

Sem comentários:

Enviar um comentário