sábado, 1 de fevereiro de 2020

O Auto da Rede

A evolução da humanidade não passa de um mito. Afinal de contas, basta abrir qualquer rede-social e constatar isso mesmo. Tecnologicamente existem grandes progressos, sem dúvida, mas algo ficou para trás e que dá sempre muito jeito, é que para o bom usufruto das coisas, entretanto inventadas e postas à disposição de todos à escala mundial, seria bom também contar com outro tipo de evolução, a mental, pois sem esta última dá asneira na certa e de nada serve o progresso a outros níveis.

As coisas são boas ou más mediante o uso que lhes damos, como uma faca, que tanto serve para descascar uma maça como para matar uma pessoa.

As redes-sociais não fogem à regra, são ótimas à partida, mas podem ser desastrosas quando mal-usadas, e isso é cada vez mais notório, talvez em virtude da própria evolução das coisas, porque deixam de ser novidade e rapidamente se entra na fase do uso e abuso até à saturação e posteriormente à fase do desinteresse, culminando com o já previsível abandono, tudo isto até surgir algo novo e entusiasmante que volte a mexer com as massas.

A mente vai ficando descorada, e entre aquilo que constatamos a esse nível em tempos longínquos, por exemplo, muito bem representado nos Autos de Gil Vicente, e aquilo que hoje vemos acontecer no que se poderia muito bem apelidar de Auto da “Facefarsa” do Inferno, não se encontra grande diferença, ou seja, as mentes não evoluíram, e as personagens são perfeitamente enquadráveis, desde o Enforcado à Brísida Vaz, passando pelo Diabo e naturalmente o Anjo, entre os demais, como ainda repescando as personagens do Auto da Índia, a Ama, a Moça e o Marido.

Desperta especial curiosidade a alcoviteira, personagem que talvez represente na perfeição o que nas redes-sociais se passa, desde as adivinhações aos arranjinhos tão evidentes, mas sem descorar as demais personagens destas intrincadas e complexas ligações entre o mundo virtual e o real, como o Marido traído, o amante Castelhano e a Ama tudo e todos, claro está, em enredos que já não se destacam de tão banais se terem tornado.

Muitas pessoas tendem a encarnar este mesmo tipo de personagens porque as suas mentes ficaram perdidas em tempos idos, no das vãs deduções e julgamentos sumários que aconteciam a torto e a direito, ao ponto de ainda não terem aprendido que em qualquer Auto da Vida, existe sempre mais que uma versão e aos adultos já se pede, no mínimo, reflexão, atendimento e entendimento de tudo e de todos.

Também são muitas Leonor Vaz (mulheres ou homens) que nestes ambientes se fazem notar, são como a prata da casa, novamente espelho da não evolução mental, quiçá neste caso até de retrocesso, pois também estas redes-sociais são indevidamente aproveitadas por fofoqueiras intriguistas para sussurrarem ao ouvido do mural alheio.

Só se pode considerar uma mente evoluída toda aquela que não se dá a vãs deduções, tampouco juízos de valor, que ouve em toda a linha, é de mente aberta (não confundir com promiscuidade) e que não deixa de dizer o que pensa, pois, pensa, mas pensa para si e di-lo em sede própria e a quem de direito.

Pedro Ferreira 2016
(Todos os Direitos Reservados, Registo de Obra n.º 2629/2017)



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